quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Considerações e Reflexões


Como o contexto tecnológico insere aspectos norteadores para a produção artística?

Quais as "trocas" e "ganhos" que a mediação tecnológica promove nos processos artísticos?



COLABORE COM SUAS CONSIDERAÇÕES

ARTE E TECNOLOGIA: algumas considerações

Arlindo Machado
Uma Experiência Radical de Videoarte


A primeira geração de artistas brasileiros que se dedicou sistemática ou esporadicamente ao vídeo despontou nos anos 70. Parece que o primeiro brasileiro a mostrar publicamente obras de videoarte foi Antônio Dias, mas isso aconteceu no contexto italiano, onde ele vivia. Entre os críticos, há um consenso de que o vídeo, encarado como um meio para a expressão estética, surge oficialmente no Brasil em 1975, a partir de duas grandes mostras de videoteipes brasileiros, uma em São Paulo e outra na Philadelphia (EUA), com trabalhos de artistas paulistas e cariocas. Essa primeira onda de realizadores ficou conhecida como a geração dos pioneiros. Como se sabe, a partir de meados da década de 60, muitos artistas tentaram romper com os esquemas estéticos e mercadológicos da pintura de cavalete, buscando materiais mais dinâmicos para dar forma às suas idéias plásticas. Entre as várias alternativas propostas, uma delas consistiu em buscar materiais para experiências estéticas inovadoras nas tecnologias geradoras de imagens industriais, como é o caso da fotografia, do cinema (Super-8, 16 mm) e do vídeo. Este último foi particularmente privilegiado em decorrência do seu baixo custo de produção, de sua absoluta independência em relação a laboratórios de revelação ou de sonorização (que funcionavam como centros de vigilância da produção na época da ditadura militar) e sobretudo pelas características lábeis e anamórficas da imagem eletrônica, mais adequadas a um tratamento plástico. Esse privilegiar do meio eletrônico no movimento de busca de alternativas para as idéias criativas vai favorecer o surgimento do fenômeno estético da videoarte no contexto brasileiro.

No Brasil, toda a primeira geração de criadores de vídeo era constituída de nomes em geral já consagrados no universo das artes plásticas ou em processo de consagração, como foram os casos de Antônio Dias, Anna Bella Geiger, José Roberto Aguilar, lvens Machado, Letícia Parente, Sônia Andrade, Regina Silveira, Julio Plaza, Paulo Herkenhoff, Regina Vater, Fernando Cocchiarale, Mary Dritschel, Paulo Bruscky e tantos outros. O vídeo nasceu, portanto, integrado ao projeto de expansão das artes plásticas, como um meio entre outros, mas no processo criativo do artista ele nunca chegou a ser encarado com exclusividade. Às vezes, era mesmo difícil compreender os trabalhos de videoarte fora do conjunto da obra do autor. Não se buscava ainda explorar possibilidades de linguagem próprias do vídeo, a não ser em um ou outro caso isolado, às vezes até de forma acidental. Essa situação só seria modificada um pouco mais tarde, quando uma nova geração, mais comprometida com a exploração dos recursos retóricos da imagem eletrônica, entrasse finalmente em cena. Essa será a geração de Rafael França.

França ocupa, entretanto, uma posição intermediária dentro da história da videoarte brasileira, ou melhor dito: uma posição de passagem. De um lado, ele é um artista deslocado em relação ao movimento brasileiro da videoarte, pois surge fora do eixo Rio-São Paulo (ele é gaúcho de Porto Alegre), onde se concentravam as produções, e realiza boa parte de sua obra videográfica em Chicago, para onde foi inicialmente estudar e depois lecionar. Ademais, ele é contemporâneo da segunda geração do vídeo brasileiro, conhecida mais genericamente como a geração do vídeo independente. Essa geração tem como horizonte não mais o circuito sofisticado dos museus e galeriais de arte, mas o universo massivo da televisão e a tentativa de conquistar um público mais amplo, não necessariamente de iniciados ou especialistas. Muito sintomaticamente, essa outra vaga de realizadores se opõe à videoarte dos pioneiros pela tendência ao documentário e à temática social. França, entretanto, nunca se deixou subordinar passivamente à geração dos independentes. Ele se manteve firme com sua visão crítica da televisão e achava, como toda a geração dos pioneiros, que o vídeo era outra coisa, algo assim como uma operação de radicalidade e densidade significante, que jamais poderia penetrar sem concessões na tela doméstica. França desconfiava também do principal circuito de difusão constituído pelos independentes, o dos festivais de vídeo, que lhe parecia pouco sério, pouco preocupado com conceitos estéticos e mais voltado para a revelação de talentos para o mercado.

Nesse sentido, embora surgindo num período posterior ao da geração dos pioneiros (que logo desistiu do vídeo e partiu para outras experiências plásticas), França foi um dos poucos que se manteve fiel aos seus princípios básicos e que deu continuidade à sua tradição ao longo da década de 80. De fato, a maioria dos trabalhos produzidos pela primeira geração consistia fundamentalmente no registro do gesto performático do artista. O dispositivo básico do primeiro vídeo brasileiro consistia quase que exclusivamente no confronto da câmera com o artista. A título de exemplo, num dos trabalhos mais perturbadores dos anos 70, a artista Letícia Parente bordou as palavras Made in Brazil sobre a própria planta dos pés, apontada para a câmera num big close up. Num certo sentido, a experiência dos pioneiros brasileiros fazia eco com uma certa ala do vídeo norte-americano do mesmo período, representada por gente como Vito Acconci, Joan Jonas e Peter Campus, cuja obra consistia – como observou na época Rosalind Krauss – em colocar o corpo do artista entre duas máquinas (a câmera e o monitor), de modo a produzir uma imagem instantânea, como a de um Narciso mirando-se no espelho.

Ninguém melhor do que Rafael França deu continuidade ao projeto estético dos pioneiros (simplicidade formal, uso moderado de tecnologia, inserção “narcísica” do próprio realizador na imagem, auto-exposição pública). Como acontecia em quase toda a obra da primeira geração, o personagem principal dos vídeos de França é quase sempre ele mesmo, seja figurando pessoalmente como protagonista, seja se fazendo projetar num outro. França encontrou no vídeo um meio adequado para meditar e especular sobre seus próprios conflitos interiores, sobretudo sobre sua obsessão maior: a fatalidade da morte. Sua obra, de cunho bastante pessoal, esteve também centrada numa indagação dramática sobre a questão da homossexualidade. Talvez seja possível dizer que “Without Fear of Vertigo” (Sem Medo da Vertigem) ocupe um lugar estratégico em sua obra. Nesse vídeo, o próprio França e vários amigos brasileiros e norte-americanos discutem as experiências do suicídio e do enfrentamento da morte, exatamente num momento (1987) em que a AIDS começa vagarosamente a aparecer como um flagelo, mas um flagelo restrito (até aquele momento) à comunidade dos homossexuais. No final do mesmo trabalho, o artista mostra uma suposta acareação policial de Peter Whitehall, condenado a cinco anos de prisão nos E.U.A. por ter colaborado no suicídio de seu companheiro Yann Bondy.

França morreu em 1991, vítima da AIDS, depois de ter nos presenteado com um dos testemunhos mais autênticos de fidelidade a si próprio. Seu último vídeo, “Prelúdio de uma Morte Anunciada” (1991), terminado alguns dias antes de sua morte, é uma verdadeira celebração dos valores que nortearam sua vida e dos quais ele jamais abriu mão, nem mesmo nos momentos de maior agonia de sua doença. No vídeo, o próprio França troca carícias com seu companheiro Geraldo Rivello, enquanto aparecem na tela os nomes de todos os amigos brasileiros e norte-americanos que foram vitimados pela AIDS e a trilha sonora deixa correr uma dilacerante interpretação de La Traviata pela soprano brasileira Bidu Saião, gravada em 1943. A última coisa que aparece no vídeo é o texto: Above all they had no fear of vertigo (Apesar de tudo, eles não tiveram nenhum medo da vertigem), que claramente interliga Without a Prelúdio.

Se, de um lado, França dará continuidade, nos anos 80, ao projeto estético dos pioneiros, em termos de postura existencial, radicalidade da empreitada e recusa de subordinação aos valores do mercado, por outro lado, ele será também um dos primeiros a romper com esse projeto no que ele tem de indiferença semiótica, aversão a questões relativas à retórica do meio e uma certa concepção meramente instrumental do vídeo (o vídeo como simples dispositivo de registro). De fato, França será um dos primeiros videastas brasileiros a se dedicar seriamente à pesquisa dos meios expressivos do vídeo e a apontar caminhos criativos para a organização das idéias plásticas e acústicas em termos de adequação ao meio. Essa preocupação jamais foi marginal em sua obra, malgrado o fato dos aspectos semânticos, tão fortes e impositivos, muitas vezes saltarem ao primeiro plano com maior ênfase, obscurecendo as inovações no plano sintático. Não podemos nos esquecer de que, além de realizador, França foi também um pesquisador da mídia eletrônica: ele lecionava, escrevia para jornais e revistas de arte, fazia curadoria de mostras de videoarte e é impossível imaginar que toda essa atividade metalingüística não tivesse repercussões em seu trabalho. Pelo contrário, as idéias de França sobre o potencial expressivo do vídeo contaminaram não apenas o seu próprio trabalho, como também o de muitos de seus contemporâneos da geração do vídeo independente. Pode-se mesmo dizer que várias gerações de vídeo-artistas brasileiros se desenvolveram graças às idéias e aos caminhos apontados por ele. Ainda hoje, os vídeos de França constituem um dos melhores repertórios de idéias criativas já constituídos no Brasil e poderiam estar servindo de fonte de inspiração às novas gerações, se tudo o que é bom não ficasse imediatamente underground em nossa pobre cuItura colonizada.

Vejamos um exemplo eloqüente. Desde as origens da videoarte, na década de 60, uma das discussões mais complicadas e ainda hoje não inteiramente resolvida diz respeito ao problema da ficção no meio eletrônico. Já houve mesmo quem defendesse a idéia de que o vídeo não é um meio adequado a propostas narrativas, afirmação essa que, malgrado contestável no plano teórico, é corroborada pela prática efetiva do meio. De fato, nos seus pouco menos de 40 anos de história, a arte do vídeo acumulou poucas experiências narrativas realmente dignas de atenção, enquanto a televisão demonstrava, por outro lado, que as formas narrativas (séries, novelas) propostas para a tela pequena nunca passaram de estilizações ou diluições de modelos dados pelo cinema. Um dos aspectos mais ricos da obra de Rafael França é justamente a experimentação de alternativas criativas para a ficção videográfica. Pode-se mesmo dizer que, excetuando-se justamente os dois trabalhos acima citados – Prelúdio e Without, raros exemplos de registros documentais na obra de França – os demais trabalhos são sempre experiências de invenção de novas formas narrativas para o vídeo, sem perder, todavia, o seu aspecto confessional ou auto-testemunhal mais básico.

Não se espere, todavia, encontrar nos vídeos de França narrativas clássicas, à maneira de uma certa literatura ou de um certo cinema, que nos habituaram com alguns modelos canônicos de ficção. As narrativas de França são totalmente experimentais, absolutamente elípticas e descontínuas, explorando coisas como o contraste dinâmico entre cortes muito rápidos e muito lentos, seqüências inteiras apresentadas quadro-a-quadro (como se fosse uma projeção de slides), faux raccords com planos seccionados em plena duração de uma frase, imagens fora de foco, ausência de sincronia entre som e imagem, diálogos apresentados de trás para a frente, uso de diferentes texturas de cores ou preto e branco e assim por diante. “O Silêncio Profundo das Coisas Mortas” (1988), por exemplo, é uma história de amor e traição entre dois amantes homossexuais, onde presente e passado, realidade e memória, experiência e desejo são misturados de forma intrincada e contaminados ainda pela intromissão do social, do urbano (a cidade, o trânsito, o carnaval) na intimidade dos amantes. “Reencontro” (1984) parece uma interpretação moderna (ambientada nos duros tempos da ditadura militar, com referências explícitas a métodos de tortura) da parábola de William Wilson, célebre narrativa de Poe sobre um personagem perseguido pelo seu alter ego e que termina se matando para fugir de si mesmo. “Getting Out” (Fugindo, 1985) é uma narrativa tensa e claustrofóbica sobre uma mulher que simula a situação de estar trancada em casa num edifício que se incendeia, “Combat in Vain” (Combate Inútil, 1984) e “Fighting the Invisible Enemy” (Lutando contra o Inimigo Invisível, 1983), por sua vez, trabalham com uma absorção criativa do efeito zapping (colagem caótica de imagens e sons, semelhante à varredura rápida dos canais de televisão), de modo a sugerir narrativas estilhaçadas, a um passo da completa dissolução.

A esse esforço de repensar a ficção no meio eletrônico, deve-se somar outro, igualmente sistemático, de reinterpretar os recursos técnicos do vídeo numa perspectiva autoral e inventiva. Ao contrário de boa parte de seus companheiros da geração do vídeo independente, França não se deixava seduzir pelas máquinas de efeitos, cada vez mais freqüentes nos meios eletrônicos, mas também não as rejeitava simplesmente. Ele foi, ao contrário, um dos poucos criadores que se empenharam seriamente em pesquisar a funcionalidade expressiva de cada um desses efeitos, em termos de rentabilidade dramática. Em “Insônia” (1989), por exemplo, uma adaptação livre de um texto de Graciliano Ramos, novamente ambientada no mundo homossexual, pode-se ver uma utilização bastante contida e quase minimalista de certos efeitos digitais utilizados na televisão, como a compressão da imagem ou a multiplicação de telas dentro do quadro videográfico. França chegou a fazer versão desse vídeo para videowall, um dispositivo caracterizado pela apresentação excessiva e espetacular,
utilizado quase que exclusivamente na esfera publicitária. Nessa versão, ele consegue o que até então parecia impossível: uma utilização intimista, concentrada e reflexiva do videowall, logrando, dessa forma, colocá-lo a serviço da narração e não da ostenteção tecnológica. Para uma geração que cresceu à luz das imagens excessivas da MTV, a intervenção de França funcionou como contraponto iluminador e necessário.

disponível em <http://videarte.wordpress.com/texto-de-arlindo-machado/>